quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Um guri que lava e o sentido das lutas

Por Igor De Bearzi

Numa manhã, dias atrás, em mais uma dessas manhãs escaldantes, resolvi que tinha que mandar lavar minha moto. Chegando ao posto de lavagem de carros, abasteci, paguei pela lavagem e deixei na fila de lavagem. Logo pensei: vou cuidar como esses caras lavam, porque da outra vez só deram uma tapiada e ficou bem meia boca a lavagem. Fui olhar como lavam os veículos, seguindo a atitude do senhor proprietário de um Chevette. Nisso me deparei com um guri terminando de lavar o Chevette. Rapaz muito novo, de chinelos, uma bermuda daquelas de jogar futebol e uma camiseta amarela, ambas muito batidas pelo uso continuo. Na entrega da chave do carro para o senhor do Chevette, a primeira cena comovente. O senhor abre a carteira e não consegui ver direito o que ele passou para o guri. Logo depois, puxa o banco do motorista para frente, pega um pastel e dá para o menino, que sai comendo o pastel. Logo pensei, nas minhas análises teóricas e ideologizadas: o senhor é um ser solidário. Será que isso é uma característica do povo brasileiro? Já emocionado, comecei a pensar sobre o que eu deveria fazer quando ele terminasse de lavar a moto e não demorei muito para concluir, resgatando minhas análises, talvez estreitas, limitadas e insensíveis, mas foi o que decidi. Não vou dar esmola. Esmola é coisa de pessoas que querem fazer descarrego de consciência, que querem, no caso de um endinheirado, tentar reparar o dano que fazem aos guris que por aí vivem. Levei a moto até onde o guri pediu para que levasse para que ele a lavasse. Me afastei e fiquei olhando o guri lavar a moto, isso depois dele dar umas bocadas rápidas no pastel e de deixá-lo em cima de qualquer coisa ali do lado. Meu olhar vigiante, controlador do jeito como iriam lavar minha moto se perdeu diante de tal cena e fiquei ali, emocionado, abalado. O guri devia estar pensando, que que esse loko ta aí cuidando como eu lavo a moto. Contive as lágrimas, sou emotivo, mas para ser macho, aprendesse desde cedo a chorar pra dentro, até mesmo encher os olhos de lágrimas, como de fato aconteceu, mas segurar o choro. Continuei assistindo a cena. Dali em diante o que via só servia para eu lembrar ou refletir sobre muita coisa. A primeira coisa que me veio a cabeça foi: poderia ser eu. Sim! Aos meus 15 anos de idade passei a vir trabalhar na cidade durante as férias do segundo grau. Via meus primos vir trabalhar na cidade, a maioria como mecânicos, e logo comprarem uma moto. Queria o mesmo. Fiquei sabendo de um emprego para vender batata frita e vim trabalhar em Ijuí. Lembrei de tudo isso porque logo depois de vir para a cidade vender batata frita, fiquei sabendo de um emprego para lavar carros. Fui ver do tal emprego. A proposta era melhor do que a de vender batata frita, tentadora. Lembro que a época consultava meus primos sobre quase tudo nesse mundo novo pra mim que era a cidade. Pois perguntei o que eles achavam e me disseram: pensa no inverno, tu lavando carros. Pensei melhor e não fui lavar carros. Continuei vendendo batata frita, mesmo ganhando por comissão. Virava a cidade a pé ou de bicicleta e conseguia atingir um salário mínimo de cento e oitenta reais e pouco, se não me engano, ás vezes conseguindo até alguns trocados a mais. Lembrando de tudo isso, pensei: quanto será que o guri ganha? Considerando o que eu ganhava e fazendo minhas análises políticas, concluí: Acho que se ganhar muito é um salário mínimo, hoje de R$ 622,00, valor não só numericamente, mas realmente superior ao que eu recebia nos anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1998. Pensando e assistindo o guri lavar a moto, outra coisa me chamou a atenção. E esses produtos que usam para lavar veículos. Isso deve fazer muito mal a saúde, além do fato de o guri estar lavando de chinelos, sempre molhado, sem nenhuma proteção. Eis que atendendo ao grito de um outro rapaz que não vi quem era, mas que estava lá no fundo do posto, o Guri me diz assustado: o teu cortou a cabeça, ta todo ensanguentado. Chamou o frentista, que chamou um outro senhor que tava numa revenda de carros, lá do outro lado da rua. Não fui ver o guri ensangüentado. Essas coisas me embrulham o estômago. Mas o frentista voltou e pedi o que ouve, se o teu estava bem. Ele me disse que estava bem sim, só tinha cortado a testa quando um pneu caiu e um ferro bateu na cabeça, dando um corte e enrugando a testa. Fiquei pensando no que iriam fazer, profundamente indignado com o tal posto. Mas o guri voltou a lavar a moto como se nada tivesse acontecido e eu me voltei novamente para analisar a cena dele lavando a moto. Ele terminou de lavar. Eu fui pegar a moto e hesitei novamente, será que eu dou uma moeda? Mas já havia me decidido. Perguntei ao guri: Qual a tua idade? Ele disse: quatorze anos. Que produto vocês usam pra lavar os carros? Será que faz mal? O guri disse: Metacil. Mas não dá nada pra gente. Saí do local da lavagem pensando em muita coisa, mas um novo questionamento me surgiu. Será que o dono deste posto é dono só deste ou tem outros. Fui a loja de conveniências, comprei uma água e quando estava pagando pedi para a atendente se o dono do posto era dono só deste. Ela me olhou meio assustada, tem tido muitos assaltos a postos na região, e disse que o dono do posto tinha mais um, mas vendeu. Saí da loja de conveniências, peguei a moto e saí do posto pensando que nunca mais iria esquecer aquela cena.
                Pergunto a quem ler: Essas coisas não dão sentido para se lutar?